terça-feira, 9 de abril de 2013

Leitura Complementar sobre Pré-modernismo


Escola de Referência Abílio de Souza Barbosa

Professora Jaqueline Santos

Disciplina: Português      Área: Literatura


Leitura Complementar

 

EUCLIDES DA CUNHA EM Os Sertões


O autor fizera a cobertura do conflito de Canudos para o jornal "O Estado de S. Paulo" e seu livro foi escrito com base nos acontecimentos que presenciou naquela região.

Obra publicada em 1902 por Euclides da Cunha, Os Sertões é um misto de literatura com relato histórico e jornalístico. É uma resposta realista e pessimista à visão ufanista do Brasil, simbolizada pela obra do Conde Afonso Celso Porque me Ufano do Meu País. Em 1897, Euclides da Cunha havia sido enviado pelo jornal O Estado de S. Paulo, como correspondente, ao norte da Bahia para fazer a cobertura do conflito no arraial de Canudos, liderado por Antônio Conselheiro. Com base no que viu e no que pesquisou depois, escreveu seu livro. 

CIÊNCIA LITERÁRIA 
Dividido em três partes - A Terra, O Homem e A Luta -, o livro ganhou status de obra literária em virtude do estilo apurado e impecável de Euclides da Cunha.
A primeira parte, A Terra, pode ser vista como um estudo geográfico escrito em forma literária. Seguindo os princípios positivistas, o autor descreve de forma minuciosa as características do meio sertanejo. Ao traçar a rota do sudeste, partindo do litoral em direção ao sertão, Euclides da Cunha, com olhar científico, leva o leitor por um árido percurso descritivo.
O vocabulário técnico empregado afastaria essa narrativa da conceituação clássica de literatura. Porém, o estilo empregado pelo narrador dá à obra um ritmo peculiar. Isso se deve à cadência formal (representada pelas construções sintáticas), que imita o movimento de entrada no sertão. Dessa forma, percebe-se uma preocupação estética: o narrador busca, no plano da forma, reproduzir, ou imitar, o conteúdo do texto.
Se a primeira parte se aproxima do estudo geográfico, a segunda (O Homem) pode ser confundida com um texto antropológico. De acordo com a estética naturalista, fortemente amparada pela filosofia de Taine - na qual o homem é determinado pela tríade meio/raça/história -, essa parte representa o aprofundamento de análise da raça sertaneja.
A Luta, terceira parte do livro, narra a batalha entre o litoral desenvolvido e o interior atrasado. A princípio, Euclides da Cunha, que compartilha as idéias do povo litorâneo, enxerga os acontecimentos no arraial de Canudos como uma revolta. No decorrer da narrativa, porém, essa posição se altera gradativamente até a compreensão de que os sertanejos constituíam um povo isolado e, por isso, homogêneo.
Essa homogeneidade se deve a um isolamento histórico provocado pelo esquecimento civilizatório, que os manteve distantes do desenvolvimento litorâneo. 

ENREDO
A TERRA - De um ponto de vista privilegiado, elevado, o narrador inicia uma série de descrições que, como foi dito, se aproximam de uma tese científica. Passando seu olhar arguto por análises biológicas, climáticas e geográficas, ele descobre o espaço do sertão. Começa pelo planalto central e chega até o norte da Bahia, no arraial de Canudos.
Nessa descrição, Euclides da Cunha estuda de maneira detalhada o meio que determinou a formação do homem sertanejo. Isso serve de ratificação da teoria determinista, muito em voga na época, que postulava a determinação do meio sobre o homem.
O seguinte trecho é bastante ilustrativo, tanto do ponto de vista formal quanto do metodológico, dessa primeira parte do livro: "Do alto da Serra de Monte Santo atentando-se para a região, estendida em torno num raio de quinze léguas, nota-se, como num mapa em relevo, a sua conformação orográfica. E vê-se que as cordas de serras, ao invés de se alongarem para o nascente, medianas aos traçados do Vaza- Barris e Itapicuru, formandolhes o divortium aquarum, progridem para o norte. Mostram-no as serras Grande e do Atanásio, correndo, e a princípio distintas, uma para NO e outra para N e fundindo-se na do Acaru, onde abrolham os mananciais intermitentes do Bendegó e seus tributários efêmeros. Unificadas, aliam-se às de Caraíbas e do Lopes e nestas de novo se embebem, formando-se as massas do Cambaio, de onde irradiam as pequenas cadeias do Coxomongó e Calumbi, e para o noroeste os píncaros torreantes do Caipã. Obediente à mesma tendência, a do Aracati, lançando-se a NO, à borda dos tabuleiros de Jeremoabo, progride, descontínua, naquele rumo e, depois de entalhada pelo Vaza- Barris em Cocorobó, inflete para o poente, repartindo-se nas da Canabrava e Poço-de-Cima, que a prolongam. Todas traçam, afinal, uma elítica curva fechada ao sul por um morro, o da Favela, em torno de larga planura ondeante onde se erigia o arraial de Canudos - e daí para o norte, de novo se dispersam e descaem até acabarem em chapadas altas à borda do S. Francisco." 

O HOMEM - Partindo de uma análise da gênese antropológica das raças formadoras do homem brasileiro, o narrador decreta a impossibilidade de unidade racial, ou seja, no Brasil seria impossível termos uma raça homogênea.
Porém, devido ao isolamento dos paulistas desbravadores que se tornaram vaqueiros do São Francisco, pode-se dizer que se criou nesse povo certa homogeneidade.
O narrador discorre, também, sobre as tradições sertanejas dos vaqueiros, descrevendo com minúcias seu modo de vida.
Em virtude de fazer parte de uma família cearense que se envolvera em querelas na região, além de ter perdido sua mulher para um policial, Antônio Conselheiro embrenhou-se pelo sertão sem rumo certo, peregrinando pelas cidades. Ele tinha uma imagem messiânica, profética: trajava roupão azul, com uma cabeleira por cortar e desgrenhada, carregando um bastão. Essa imagem favoreceu sua associação com uma figura mística, que serviu como uma luva para o povo fanático e desvalido. A formação do povo brasileiro é assim descrita por Euclides da Cunha:
"Conhecemos, deste modo, os três elementos essenciais, e, imperfeitamente embora, o meio físico diferenciador - e ainda, sob todas as suas formas, as condições históricas adversas ou favoráveis que sobre eles reagiram. No considerar, porém, todas as alternativas e todas as fases intermédias desse entrelaçamento de tipos antropológicos de graus díspares nos atributos físicos e psíquicos, sob os influxos de um meio variável, capaz de diversos climas, tendo discordantes aspectos e opostas condições de vida, pode afirmar-se que pouco nos temos avantajado. Escrevemos todas as variáveis de uma fórmula intricada, traduzindo sério problema; mas não desvendamos todas as incógnitas. 
É que, evidentemente, não basta, para o nosso caso, que postos uns diante de outros o negro banto, o indo-guarani e o branco, apliquemos ao conjunto a lei antropológica de Broca. Esta é abstrata e irredutível. Não nos diz quais os reagentes que podem atenuar o influxo da raça mais numerosa ou mais forte, e causas que o extingam ou atenuem quando ao contrário da combinação binária, que pressupõe, despontam três fatores diversos, adstritos às vicissitudes da história e dos climas. 
É uma regra que nos orienta apenas no indagarmos a verdade. Modifica-se, como todas as leis, à pressão dos dados objetivos. Mas ainda quando por extravagante indisciplina mental alguém tentasse aplicá-la, de todo despeada da intervenção daqueles, não simplificaria o problema."

A LUTA - O conflito de Canudos surgiu de uma pequena desavença local. Antônio Conselheiro havia encomendado e pago um lote de madeiras para a construção de uma igreja no arraial de Canudos. 
Como o lote não foi entregue, houve uma ameaça de ataque à cidade de Juazeiro. O juiz da região pediu ajuda ao governador da Bahia, que, não conseguindo resolver a situação, solicitou a presença das tropas federais. Antônio Conselheiro também era acusado de sonegador de impostos e de ser antirrepublicano, por manifestar-se contra a dissociação entre Estado e Igreja no casamento - medida surgida com o advento da República.
Esses foram os argumentos oficiais do governo brasileiro para o ataque ao arraial de Canudos. 
Este trecho de Euclides da Cunha descreve a situação no final dos combates: "A luta, que viera perdendo dia a dia o caráter militar, degenerou, ao cabo, inteiramente. Foram-se os últimos traços de um formalismo inútil: deliberações de comando, movimentos combinados, distribuições de forças, os mesmos toques de cornetas, e por fim a própria hierarquia, já materialmente extinta num exército sem distintivos e sem fardas. Sabia-se de uma coisa única: os jagunços não poderiam resistir por muitas horas. Alguns soldados se haviam abeirado do último reduto e colhido de um lance a situação dos adversários. Era incrível: numa cava quadrangular, de pouco mais de metro de fundo, ao lado da igreja nova, uns vinte lutadores, esfomeados e rotos, medonhos de ver-se, predispunham-se a um suicídio formidável. Chamou-se aquilo o "hospital de sangue" dos jagunços. Era um túmulo. De feito, lá estavam, em maior número, os mortos, alguns de muitos dias já, enfileirados ao longo das quatro bordas da escavação e formando o quadrado assombroso dentro do qual uma dúzia de moribundos, vidas concentradas na última contração dos dedos nos gatilhos das espingardas, combatiam contra um exército. E lutavam com relativa vantagem ainda. Pelo menos fizeram parar os adversários. Destes os que mais se aproximaram lá ficaram, aumentando a trincheira sinistra de corpos esmigalhados e sangrentos. Viam-se, salpintando o acervo de cadáveres andrajosos dos jagunços, listras vermelhas de fardas e entre elas as divisas do sargento-ajudante do 39o, que lá entrara, baqueando logo. Outros tiveram igual destino. Tinham a ilusão do último recontro feliz e fácil: romperam pelos últimos casebres envolventes, caindo de chofre sobre os titãs combalidos, fulminando-os, esmagando-os..." 


MONTEIRO LOBATO EM "Urupês" - resumo e análise

Urupês e o nascimento de Jeca Tatu
"Urupês", obra publicada originalmente em 1918, reúne ao todo 14 contos de Monteiro Lobato. Segundo o prefácio da 2a. Edição do livro, esta obra surgiu do artigo “Velha praga”, publicado originalmente no jornal O Estado de São Paulo no ano de 1914. Na época, Monteiro Lobato dedicava-se ao trabalho na fazenda que recebeu como herança de seu avô e amargava um ano terrível por conta da seca. Além do problema causado pela seca do inverno, Monteiro Lobato estava exausto das constantes queimadas praticadas pelos caboclos. Por conta disso, ele resolveu escrever uma carta de indignação ao jornal, que viu naquele texto algo muito valioso e o publicou fora da seção de cartas dos leitores. “Velha praga” causou grande impacto e polêmica, fazendo com que Monteiro Lobato publicasse outros textos que dariam origem ao livro "Urupês".
Um destes textos, cujo título dá nome ao livro (“Urupês”), dá vida ao que seria sua mais famosa personagem: o caboclo Jeca Tatu. Se o índio surgira como modelo ideal do brasileiro para os escritores do Romantismo da fase indianista, a figura do caboclo aparecia como seu substituto moderno – ao que Monteiro Lobato chamou de “caboclismo”. Porém, o caboclo de Monteiro Lobato não era em nada idealizado, mas ao contrário, trazia suas características negativas enfatizadas e o seu símbolo máximo é a personagem Jeca Tatu.
A personagem de Jeca representa toda a miséria e atraso económico do país de então, e o descaso do governo em relação ao Brasil rural. Jeca Tatu foi caracterizado por Monteiro Lobato como um homem desleixado com sua aparência e higiene pessoal, sempre de pés descalços e que mantinha uma pequena plantação apenas para subsistência. Sem nenhum tipo de educação e cultura, Jeca Tatu era um homem ingênuo e repleto de crendices. Por fim, era visto pelas pessoas como um alcoólatra e preguiçoso. Porém, como afirma Monteiro Lobato, “Jeca Tatu não é assim, ele está assim”, percebe-se através do texto que Jeca é uma vítima do descaso do governo. 
Além do surgimento de uma das personagens mais icônicas da literatura brasileira (Jeca Tatu), Urupês trouxe uma série de inovações e sua importância se estende até os dias atuais. Uma delas diz respeito à linguagem empregada no livro. Monteiro Lobato estava preocupado em reproduzir nos seus textos a riqueza da fala brasileira da zona rural, com seus coloquialismos e neologismos tipicamente orais. De acordo com a crítica literária, o recurso da oralidade foi a maior ousadia do escritor em Urupês, pois nessa época o uso do português coloquial em obras era visto como algo “inferior” e sem valor literário. Dessa forma, pode-se dizer que Urupês é uma obra que de certa forma antecede as convenções estilísticas propostas pelos modernistas da Semana de 22. 
Ainda com relação à linguagem empregada por Monteiro Lobato, é interessante notar a grande influência que Urupês teve sobre a língua portuguesa falada no Brasil. A partir do livro surgiram diversas palavras e expressões que hoje são dicionarizadas, como por exemplo o termo “jeca”, que vem da personagem Jeca Tatu e passou a ser sinônimo de “caipira”, “morador da zona rural” ou ainda “pessoa de hábitos rudimentares”.
Por fim, é importante ressaltar que a importância de Urupês não ficou restrita ao campo literário através de suas inovações estilísticas e linguísticas, mas teve também grande influência na indústria e no mercado cultural do Brasil. Isso porque até a Primeira Guerra Mundial, grande parte dos livros brasileiros eram impressos na Europa através de editoras estrangeiras, principalmente as francesas. Monteiro Lobato modificou essa forma editorial ao imprimir por conta própria o livro Urupês nas oficinas do jornal O Estado de São Paulo. 
Com o dinheiro arrecadado com a venda de sua fazenda, Monteiro Lobato comprou a Revista do Brasil em 1918 e passou a publicar, além de suas próprias obras, livros de diversos outros escritores. Posteriormente, a Editora da Revista do Brasil passaria a se chamar Cia. Gráfico-Editora Monteiro Lobato e, após o colapso dessa, ressurgiria como Companhia Editora Nacional, que é a maior do Brasil e uma das maiores da América Latina. Assim, pode-se dizer que Monteiro Lobato lançou a indústria nacional do livro através da publicação de Urupês.



EU - AUGUSTO DOS ANJOS

O amor da humanidade é uma mentira. 
 É. E é por isso que na minha lira 
 De amores fúteis poucas vezes falo. 


A poesia de Augusto dos Anjos – paraibano nascido no século passado – é de um materialismo quase brutal, embora seja no fundo, obra de um idealista, que não detestava – em absoluto – o amor, mas queria-o em seu estado impossível, espiritual, etéreo. Ledo engano de quem tomar o poeta materialista em filosofia como um materialista nos sentimentos. Augusto, bardo incomum, estranho, magérrimo, era todo humanidade: leal, cortês, honesto, coisas raras de encontrar naqueles tempos e ainda hoje. Mas foi também poeta da morbidade, da descrença, da morte.
É de Orris a seguinte descrição de Augusto dos Anjos: “Foi magro meu desventurado amigo, de magreza esquálida – faces reentrantes, olhos fundos, olheiras violáceas e testa descalvada. A boca fazia a catadura crescer de sofrimento, por contraste do olhar doente de tristura, e nos lábios um crispação de demônio torturado. Nos momentos de investigações suas vistas transmudavam-se rápido, crescendo, interrogando, teimando. E quando na narinas se lhe dilatavam? Parecia-me ver o violento acordar do anjo bom, indignado da vitória do anjo mau, sempre de si contente na fecunda terra de Jeová. Os cabelos pretos e lisos aparentavam-lhe o sombrio da epiderme trigueira. A clavícula, arqueada. Na omoplata, o corpo estrito quebrava-se numa curva para diante (...). Essa fisionomia, por onde erravam tons de catástrofe, traía-lhe a psique. Realmente, lhe era a alma uma água profunda, onde, luminosas, se refletiam as violetas da mágoa”.
Augusto dos Anjos publicou um único e afortunado livro, Eu, obra em que cantou a matéria, idealizando-a, revelando-a sob uma rutilante (e até rosnante) combinação de palavras por vocábulos esdrúxulos e cientificistas que concorreram para agravar o seu pessimismo lacerante. Cantou, como Baudelaire, as misérias da carne, a putrefação dos corpos, monista violento:
 Já o verme – este operário das ruínas – 
Que o sangue podre das carnificinas 
Come, e à vida em geral declara guerra, 
Anda a espreitar meus olhos para  roê-los, 
E há de deixar-me apenas os cabelos, 
Na frialdade inorgânica da terra!
(“Psicologia de um Vencido”)

Na opinião de Alfredo Bosi, Augusto dos Anjos deve ser visto como um poeta poderoso, que deve ser mensurado por um critério estético aberto, capaz de abrigar e reconhecer, além do “mau gosto” do vocabulário rebuscando e científico a dimensão cósmica e a angústia moral de sua poesia. Bosi avalia que a dimensão cósmica vem em primeiro lugar, porque Augusto dos Anjos centrava no ser humano, de maneira obsedante, todas as energias do universo que teriam se encaminhado para a construção do mistério que é o “eu”.
Ademais, o evolucionismo de Augusto expressa-se bem em versos como esse: de “Psicologia de um Vencido”.

Eu, filho do carbono e do amoníaco

A postura existencial do poeta, apela ao universo do distanciamento científico: uma angústia esmagadora cresce e se avoluma diante da fatalidade que conduz os homens à senda inevitável da putrefação. Toda carne infalivelmente irá se decompor um dia. Interpretação poética do cosmos e desespero particular descambam num lamento das coisas, sentimento doloroso, a raiz de todas as dores está na vontade de viver:


Triste, a escutar, pancada por pancada,
A sucessividade dos segundos,
Ouço, em sons subterrâneos, do orbe oriundos,
O choro da Energia abandonada!

É a dor da força desaproveitada
- O cantochão dos dínamos profundos,
Que, podendo mover milhões de Mundos,
Jazem ainda na estática do nada!

É o soluço da forma ainda imprecisa...
Da transcendência que se não realiza...
Da luz que não chegou a ser lampejo...  

E é, em suma, o subconsciente aí formidando
Da natureza que parou, chorando,
No rudimento do desejo!  


 Poeta, por isso, formidável, pelo poder de penetração, pelo caráter enigmático do texto, pela capacidade de revelar estratos dantescos da alma. A excentricidade desses “acordes lúgubres” levou muitos dos críticos e amantes da literatura a recriminá-lo em seu tempo. A começar pelo fato de que não se filiou a nenhuma escola nem adotou as normas à vazão utilizadas pelos literatos da época. Tomou como regra de escrita a sua própria, o seu próprio timbre e voz; seu individualismo apoderou-se da língua portuguesa e fê-la reverberar a sua angústia, a sua descrença no amor, na humanidade, na turba.
Para o poeta do Eu, as forças da matéria, que pulsam em todos os seres e em particular no homem, conduzem ao Mal e ao Nada, através de uma destruição implacável; ele é o espectador em agonia desse processo degenerescente cujo símbolo é o verme:

Ah! Para ele é que a carne podre fica,
E no inventário da matéria rica
Cabe aos seus filhos a maior porção!  
(“O Deus Verme”)

Diante da constatação de que para o homem não há outro destino senão putrefação e morte (o autor, ao que parece, não cria em Deus, pelo menos não como o entendem os teólogos), abala-se a concepção de amor sensual e prazer de Augusto dos Anjos:

Sobre história de amor o interrogar-me
É vão, é inútil, é improfícuo, em suma;
Não sou capaz de amar mulher alguma
Nem há mulher talvez capaz de amar-me
  (“Queixas Noturnas”)
Acerca do prazer ele diz: Se algum dia o Prazer vier procurar-me / Dize a este monstro que eu fugi de
casa!
Antônio Houaiss diz a esse respeito: “Eis porque lhe chamo poeta da morte”, porque não amava nem a Vida nem o Amor. Estava no seu direito, na sua fatalidade”. Um soneto cabalístico que o poeta fez pouco antes de sua morte, “Último Número” resume quem sabe, o seu embate com o cosmo, com a poesia, com a humanidade:

Hora da minha morte. Hirta, ao meu lado, 
A idéia estertorava-se... No fundo
Do meu entendimento moribundo
jazia o Último Número cansado.  

Era de vê-lo imóvel, resignado,
Tragicamente de si mesmo oriundo,
Fora de sucessão, extranho ao mundo,
Como o reflexo fúnebre do Incriado!

Bradei: - Que fazes ainda no meu crânio!
E o Último Número, astro e subterrâneo,
Parecia dizer-me: “É tarde, amigo!  

Pois que a minha autogênita Grandeza
Nunca vibrou em tua língua presa,
Não te Abandono mais! Morro contigo!”  


 Augusto dos Anjos morreu muito cedo, aos trinta anos. Deixou uma obra breve e imperfeita, mas é imperdoável não reconhecer-lhe entre essas imperfeições o cintilar de uma literatura contundente e nova, brotada num ambiente inóspito. Orris Soares diz a respeito de seu único livro: “Eu é um livro de sofrimento, de verdade e de protestos: sofre as dores que dilaceram o homem e aquelas do cosmos; e, em relação ao homem e ao cosmos, diz as verdades aprendidas por indagação e ciência, protestando em nome dellas, pelo que no homem e no cosmos há de desconexo, de ilógico, de absurdo Um livro de pensamentos, sem fantasias nem doidivanices”.

Alguns de seus trabalhos


VERSOS ÍNTIMOS

Vês?! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Somente a ingratidão - esta pantera -
Foi tua companheira inseparável!

Acostuma-te à lama que te espera!
O Homem, que, nesta terra miserável,
Mora, entre feras sente inevitável
Necessidade de também ser fera.

Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a vespera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.

Se alguém causa inda pena tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija

A IDÉIA

De onde ela vem?! De que matéria bruta
Vem essa luz que sobre as nebulosas
Cai de incógnitas criptas misteriosas
Como as estalactites duma gruta?!

Vem da psicogenética e alta luta
Do feixe de moléculas nervosas,
Que, em desintegração maravilhosas,
Delibera, e depois, quer e executa!
Vem do encéfalo absconso que a constringe,
Chega em seguida às cordas da laringe,
Tísica, tênue, mínima, raquítica…

Quebra a força centrípeda que a amarra,
Mas, de repente, e quase morta, esbarra
No molambo da língua paralítica!

PSICOLOGIA DE UM VENCIDO

Eu, filho do carbono e do amoníaco,
Monstro de escuridão e rutilância,
Sofro, desde a epigênese da infância,
A influência má dos signos do zodíaco.

Profundissimamente hipocondríaco,
Este ambiente me causa repugnância…
Sobe-me à boca uma ânsia análoga à ânsia
Que escapa da boca de um cardíaco.

Já o verme este operário das ruínas
Que o sangue podre das carnificinas
Come, e à vida em geral declara guerra, 

Anda a espreitar meus olhos para roê-los,
E há de deixar-me apenas os cabelos,
Na frialidade inorgânica da terra!

SOLITÁRIO

Como um fantasma que se refugia
Na solidão da natureza morta,
Por trás dos ermos túmulos, um dia,
Eu fui refugiar-me à tua porta!

Fazia frio e o frio que fazia
Não era esse que a carne nos conforta...
Cortava assim como em carniçaria
O aço das facas incisivas corta!

Mas tu não vieste ver minha Desgraça!
E eu saí, como quem tudo repele,
— Velho caixão a carregar destroços —

Levando apenas na tumbal carcaça        
O pergaminho singular da pele
E o chocalho fatídico dos ossos!


Em muitos de seus poemas sobressaiam cargas pesadas de dor e pessimismo. Ao ler alguns de seus poemas presentes em sua principal obra intitulada “Eu”, pude denotar essas características tão marcantes do autor. O poema em análise: “Solitário”; difunde os sentimentos do eu lírico ao ser abandonado e deixado ao frio daquele dia, “... Fazia frio e o frio que fazia/ Não era esse que a carne nos conforta... / Cortava assim como em carniça/ O aço das facas incisivas corta! / Mas tu não vieste ver minha Desgraça! /...”. Causando espanto, Augusto dos Anjos foi rotulado na época como autor com vocabulário de ‘“mau gosto”’, não concordo que seja este um de seus defeitos. Os sentimentos profundos são como bolas de neve, quanto mais rolam, mais adquirem tamanho. Ele parece exprimir todo este mal estado em seus versos tornando-os chocantes, atordoantes, mas não seja este seu defeito, não devemos culpá-lo de suas verdades.
Por Vicente Vielmo

Monólogo de uma sobra



Sou uma Sombra! Venho de outras eras,
Do cosmopolitismo das moneras...
Pólipo de recônditas reentrâncias,
Larva de caos telúrico, procedo
Da escuridão do cósmico segredo,
Da substância de todas as substâncias!

(...)
Como um pouco de saliva quotidiana
Mostro meu nojo á Natureza Humana.
A podridão me serve de Evangelho...
Amo o esterco, os resíduos ruins dos quiosques
E o animal inferior que urra nos bosques
E com certeza meu irmão mais velho!